O presente estudo, com o tema: Ensino-aprendizagem de Saberes Locais na Localidade de Chidenguele, analisa a integração de conteúdos locais nos programas do II ciclo do ensino básico através do currículo local. Fez-se revisão bibliográfica da qual se infere que o currículo é um artefacto social no qual se estabelecem visões sociais particulares enriquecidas de diversidades locais dentro da diversidade cultural e a escola tem a missão histórica de garantir a reprodução e reaparecimento de identidades culturais que relacionem o indivíduo e a cultura. Assim com o presente trabalho procura-se ver até que ponto esta demanda é exequível na Localidade de Chidenguele face à introdução dos saberes locais no currículo do Ensino Básico. Na aferição da maneira como esse processo é localmente conduzido chega-se à conclusão de que as opções metodológicas do ensino destes saberes constam no rol das discussões num contexto em que a partilha de responsabilidades entre a comunidade e a escola é questionada na medida em que existe diapasão entre os saberes seleccionados e o processo de leccionação destes. As conclusões principais demonstram que a comunidade de Chidenguele dispõe de um rico mosaico cultural que pode ser captado e integrado no currículo local desde que a escola se potencie metodologicamente para o sucesso deste processo.
Palavras-Chave: Cultura, currículo local, ensino básico, ensino-aprendizagem, saberes locais.
This study, with the theme: teaching and learning of Local Knowledge in the Locality of Chidenguele, discusses the integration of local content program II cycle basic education across the curriculum. Literature review was made which infers that the curriculum is a social artifact in which personal social views of local diversities within the rich cultural diversity and the school has the historic mission of ensuring reproduction and reappearance of cultural identities which relate the individual and culture. So with this work is an attempt to see how far this demand is feasible in the Locality of Chidenguele cope with the introduction of local knowledge in the curriculum of basic education. In gauging how this process is locally driven appears to the conclusion that the methodological options of education knowledge listed in list of discussions in a context where the sharing of responsibilities between the community and the school is questioned in that there is a pitch between the selected knowledge and teaching process. Key findings demonstrate that the community of Chidenguele has a rich cultural mosaic that can be captured and integrated into the local curriculum since the school is methodologically stepped up to the success of this process.
Key-words: Culture, local curriculum, basic education, teaching-learning, local knowledge.
O presente artigo discute sobre o processo de ensino-aprendizagem de saberes locais na Localidade de Chidenguele, numa altura em que o novo currículo do ensino básico em Moçambique, concebido em 2003, reformulando o currículo do Sistema Nacional de Educação introduzido em 1983, pela lei nº4/83, de 23 de Março e revisto em 1992 pela lei 6/92 de 6 de Maio, apresenta inovações e estratégias para corresponder aos desafios que continuamente são colocados pelo desenvolvimento da sociedade.
Estruturado em 3 áreas curriculares, nomeadamente: Comunicação e Ciências Sociais, Matemática e Ciências Naturais e Actividades Práticas e Tecnológicas, tal currículo pretende desenvolver, em paralelo, uma comunicação multifacetada cada vez mais abrangente, partindo do meio local e passando pelo nacional até atingir o internacional, no quadro do conhecimento da complexidade do social, com a primeira área; habilitar a mente com o fim de permiti-la interpretar a natureza que o rodeia, tendo como fim estabelecer um equilíbrio amistoso com esta, com a segunda e proporcionar que o aluno tenha a capacidade de observar, imaginar e expressar-se artística e fisicamente, com a terceira (MINED/INDE, 2003).
O interesse pelo estudo dos aspectos que garantem a sobrevivência da cultura chope, enquadra-se nos estudos de micro-contextos para o resgate de saberes locais para respectiva integração nos programas de ensino. A inclusão de saberes locais dinamiza o processo de ensino-aprendizagem, aproxima e contextualiza, de certa maneira, a cultura local na escola moderna. A presente pesquisa insere-se também num contexto em que se valoriza a construção, sistematização e divulgação de conhecimentos novos a partir da comunidade, valorizando todo o tipo de fontes disponíveis. O estudo e apreensão de condições sócio-culturais de comunidades antes não divulgadas contribuem para a interacção entre os saberes locais e para a construção de uma perspectiva global.
Partindo do papel da escola como mobilizadora das condições para a concretização do saber local, com o artigo pretende-se conhecer o processo do resgate e da integração destes no currículo do ensino básico do II grau, numa altura em que o plano curricular, concebido pelo MINED (2003), e em sintonia com as linhas de pesquisa da Universidade Pedagógica, recomendam a pesquisa e integração de conteúdos locais no currículo oficial. Em parte, conjectura-se existir um diapasão entre os saberes locais pretendidos pela comunidade e a leccionação destes pela escola. De facto, as evidências indicam que um dos grandes desafios é como partir do ensino de saberes locais num contexto de globalização, como referencia LOPES (1999), para atribuir significados universais aos conteúdos ministrados a nível local, para que, numa sociedade multicultural, o aluno saiba aceitar a diferenciação e o diverso como base das relações sociais.
O interesse surge, também, pelo facto de os poucos estudos anteriormente feitos sobre aquela região, não fazerem alusão ao processo de transmissão de normas e valores culturais daquela comunidade. Assim, constituem-se como motivações para o presente estudo, a utilidade prática do currículo local, os saberes locais da comunidade de Chidenguele e caracterização do processo de selecção e integração destes nos programas do II ciclo do ensino básico naquela comunidade.
Para a presente pesquisa foi usada uma das metodologias usadas pelos historiadores das mentalidades para captar os modos colectivos de vida que, segundo BARROS (2008), tem sido a eleição de um privilegiado, como é o caso da localidade de Chidenguele, que funcione como um lugar de projecção de atitudes colectivas desde que se considerem significativas para a percepção de uma mentalidade cultural mais ampla. Assim, a pesquisa visa analisar o processo de integração de saberes locais no currículo do ensino básico a partir da experiência da Escola Primária e Completa Eduardo Mondlane de Madendere na Localidade de Chidenguele.
No presente artigo são usados alguns conceitos operatórios para a compreensão do mesmo, como o são o de currículo e saberes locais. Entende-se por CURRICULO LOCAL, o complemento do currículo oficial ou nacional, concebido a nível central, que integra saberes diversos de vida ou de interesse da comunidade local nas diferentes disciplinas previstas no plano de estudos (MINED/INDE, 2003). Uma das finalidades fundamentais do currículo, segundo SANTOMÉ (1998), é de preparar os alunos para serem cidadãos activos e membros críticos e solidários em qualquer sociedade similar. Para este autor, os alunos precisam de intervir na sociedade na qual fazem parte, desenvolvendo uma reconstrução reflexiva e crítica da realidade. Finalmente, o currículo, segundo MOREIRA (2002), transmite visões sociais particulares e interessadas, produz identidades individuais e sociais.
Para GEERTZ (1997) o saber local é a forma de agir colectiva na aldeia e esclarece que são os hábitos e as práticas. Finalmente, entende-se por SABERES LOCAIS como universo de significados culturais que as pessoas comuns lhes conferem sentido num determinado lugar (BIERSACK 2001). Saberes Locais, segundo BARROS (2008), se resumem também à uma totalidade de bens culturais produzidos pelo homem na localidade, procurando dar ideia de uma cultura única tomada de forma generalizada. Um conceito conexo, usado ao longo do artigo é o de PRÁTICAS CULTURAIS, que na óptica de BARROS (Ibid.), são técnicas e realizações de objectos culturais produzidos numa sociedade, referindo-se também aos usos e costumes que caracterizam essa sociedade, aos modos como os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem estrangeiros (p.77). Portanto, o facto de as práticas locais se referirem ao conjunto de modos de vida e atitudes, estes geram padrões de vida quotidiana ou cultura que-se tornam conteúdos ou saberes locais transmissíveis para as novas gerações; as práticas geram representações que devem ser ensinadas, por exemplo, a tecelagem de capim é uma prática cultural, o seu ensino no contexto de saberes locais contribui para difusão de novas práticas.
Tal como apresentou-se nas páginas precedentes, o presente estudo foi concretizado na Localidade de Chidenguele, que fica situada na região litorânea do distrito de Mandlakazi, Província de Gaza no Sul de Moçambique, entre as latitudes 24° 50’ e 24° 55’02’’ Sul e entre as longitudes 34° 10’ 07’’e 34° 15’ Este, junto à EN1, a 270 km de Maputo (CENECARTA). Actualmente, a Localidade de Chidenguele tem como limites: A Norte é limitada Localidade de Betula, ao Sul pelo Oceano Indico; a Leste pelas povoações de Barramo e Nhachengo e a Oeste, pela povoação de Matimuli.
A Localidade de Chidenguele evoluiu, historicamente, com o actual distrito de Mandlakazi que, em 1908, foi a sede da 8ª circunscrição civil dos M’chopes, divisão administrativa do extinto distrito de Gaza e integrada na então área do distrito de Lourenço Marques, segundo a Portaria 421 no BO 40/1908 . Em 1942, a circunscrição dos M’chopes passou a pertencer ao Posto Administrativo de Chidenguele conforme a Portaria 4941 no BO 49/1942 (RAFAEL 1981, p.160-161).
Esta circunscrição integrava Magicane, antiga designação da actual Localidade de Chidenguele, Posto Administrativo criado em 1921 pelo BO 27 e extinto em 1923 pela portaria 584 do BO 40 do mesmo ano. Em 1942, o posto foi reaberto com a nova designação de Posto Administrativo de Chidenguele, através da portaria 4941 do BO 49 do mesmo ano.
A Localidade de Chidenguele foi regedoria até 1975 e tem uma superfície de 897 km2, (Ibid., 1981, p.100 e 147).
A região de Chidenguele é habitada por chopes, que presume-se serem um conglomerado de tribos ou segmentos que se fixaram na região de migrações anteriores provenientes de vários quadrantes da África Austral. O termo chope foi lhe atribuído pelos angunes pelo facto de arremessarem flechas. Os grupos mais representativos foram três e todos vinham da região dos Karangas: Valói, Langa e Guambe (DE MATOS 1973, p. 3-4) . Faz-se também referência de atribuir-lhes origem Chona-Caranga por motivos históricos linguísticos e por alguns traços culturais específicos (DA SILVA, 1969, p. 351).
Das constatações feitas na região em estudo e confirmadas pelos informantes arrolados durante a pesquisa, a família é constituída por duas pessoas de sexos diferentes, sendo o homem, portanto “dhijaha” ou “wamhuana”, e uma mulher, “wansikati”, têm a função não só de procriar para assegurar a continuidade da linhagem do marido, mas também a de garantir o sustento do marido e filhos, “vhanana”, que entre eles são irmãos, “ tindia”. A mulher lidera as actividades agrícolas, grupos domésticos e económicos na presença ou ausência do marido, quando este trabalha fora da região.
A economia na comunidade de Chidenguele é assente numa agricultura influenciada pela dependência ecológica e por isso é de subsistência familiar, marcada por um fraco rendimento. O cultivo da terra é feito geralmente por membros de uma família, com maior destaque para as mulheres, só depois cada um pode realizar outras actividades secundárias.
No contexto das cosmologias locais, no Sul de Moçambique, onde os chopes se inserem, quando uma pessoa morre o seu espírito permanece enquanto manifestação do seu poder e da sua personalidade. A morte marca apenas a transição existencial, daí que o morto exerce uma influência poderosa sobre a sociedade, guiando e controlado a vida dos seres humanos (HONWANA 2002, p.14). Os mortos tornam-se “antepassados-deuses” da família, residentes nos túmulos e relacionam-se com os descendentes vivos revelando-se nestes sob forma de animais (geralmente cobras), através dos sonhos, levando os descendentes a consultar ossículos (“tihlolo”) e a respeitar o veredicto dos antepassados (JUNOD 1946, p. 352-366).
Na Localidade de Chidenguele as expressões artísticas resumem-se na produção de objectos utilitários na vida diária das populações. Destaca-se a escultura feita, com alguma perícia, por homens, a partir de madeira na produção de pratos, copos, colheres, pilão, máscaras, batuques e algum mobiliário.
No terreno constatou-se que, dos elementos que perfazem a cultura chope, isto é, todas as práticas enunciadas, sejam elas materiais ou imateriais, a sua perpetuidade é assegurada pela transmissão destes pelos mais velhos ao longo de gerações dentro da comunidade, com base na tradição oral e em actividades práticas. A educação moderna e o contacto com outras culturas apenas contribuem parcialmente para o abandono da rigidez de certas práticas.
Para análise do processo de ensino-aprendizagem de saberes locais na Localidade de Chidenguele, capitalizou-se o processo de captação, integração e ensino destes na Escola Primária e Completa Eduardo Mondlane de Madendere. É à volta desse património, transmitido pelos mais velhos para as novas gerações que deve servir de fundamento para o resgate e ensino dos saberes locais pela escola.
Na comunidade de Chidenguele e, particularmente, no caso da escola onde decorreu o estudo, no início de cada ano lectivo, em assembleia-geral da escola, a comunidade é auscultada sobre os saberes locais que a mesma sugere como importantes para a respectiva integração no currículo local. Os conteúdos seleccionados são encaminhados à ZIP que, por sua vez, endereça à direcção distrital de educação em Mandlakazi para aprovação e posterior comunicação às escolas para a respectiva integração no currículo e leccionação nas escolas. Desse rol de práticas culturais, constatou-se, também, que maior parte dos temas são integrados nas disciplinas de Ofícios, Ciências Sociais, Ciências Naturais, Educação Física e nas actividades extra-curriculares. A transversalidade dos conteúdos locais facilita a respectiva abordagem também nas restantes disciplinas curriculares conforme as situações de ensino-aprendizagem.
De acordo com o informante PF1, na disciplina de Ofícios, ensina-se algumas noções sobre a cestaria a partir da 5ª classe, onde o aluno produz diversos artigos ligados à cestaria na 6ª classe e na 7ª classe consolida a prática desta arte. Em simultâneo, aprende a decorar as suas obras.
O ensino da tecelagem começa teoricamente na 4ª classe e nas classes subsequentes são realizadas diversas actividades práticas ligadas a esta actividade. As actividades económicas, nomeadamente a agricultura, a pesca e a modelagem, são ensinadas nos respectivos temas integradores nas disciplinas de Ofícios e Ciências Naturais na 7ª classe. O culto dos antepassados é abordado com destaque no II Ciclo na disciplina de Ciências Sociais onde são enaltecidos os valores e importância desta prática nas famílias nomeadamente, kupahla, phasseka e txidhilo. Ligado a esta temática, fala-se das religiões locais na disciplina de Educação Moral e Cívica na 7ª classe. A gastronomia no contexto do saber local é ensinada no respectivo tema integrador na disciplina da Língua Portuguesa na 7ª classe. Os ritos de iniciação que no caso concreto desta escola fala-se da circuncisão masculina, são ensinados na 6ª classe quando se fala da adolescência. De facto, no caso concreto da EPC Eduardo Mondlane em Madendere, constatou-se, durante as aulas, a ministração de saberes locais onde ambos sexos realizam as mesmas actividades e assim, postula-se que, doravante, as raparigas daquela região sejam capazes de realizar actividades práticas antes reservadas aos rapazes, embora, ao nível familiar, executem, na base do género, tarefas tradicionalmente reservadas às mulheres. Notou-se ainda que os alunos com domínio de certas práticas locais são moderadores para ensinar os outros, prática que, aliás, tem sido a mais usada.
Partindo dos Programas das Disciplinas do ensino Básico (INDE/MINED, 2003) entende-se que as Ciências Sociais no ensino básico, concorrem para formação integral do aluno, ao integrarem as disciplinas de História, Geografia e Educação moral e Cívica que, em parte, detêm conhecimentos que podem ser transmitidos de forma transversal noutras disciplinas e classes. No caso do enfoque do presente estudo, as Ciências Sociais do II Ciclo, concretamente na 4ª classe, o aluno deve desenvolver competências e habilidades de apreciar a sua cultura, respeitar direitos, padrões de comportamento e crenças de outros, reconhecer o passado, desenvolver o sentido de auto-estima, reconstruir a sua história e da sua aldeia. Para o efeito, são ministrados, em primeiro lugar, os conteúdos sobre a família, onde se analisa o papel social, económico e cultural dos membros da família dentro da comunidade, visando valorizar os elementos de identificação cultural da zona onde a família está inserida. Em segundo, são ministrados conteúdos ligados à história da escola e em terceiro, o conhecimento do património e da tradição cultural da sua província, com intuito de identificar os valores de cultura, costumes e tradições de outras comunidades da sua província.
Na 5ª classe, o aluno consolida o reconhecimento do passado ao reconstituir as formas de vida das populações de há muito tempo e relacionar com a fixação de outros povos, responsáveis pela configuração do actual património cultural do país, caracterizado pela existência de diferentes grupos etnoculturais, isto é, diferentes tradições culturais.
Constata-se assim que os conteúdos apresentam interconexões partindo da realidade mais próxima, observável e interpretável pelo aluno, usando conceitos de iniciação conhecidos na língua local, para aceder à situações de aprendizagem mais complexas, à medida que o aluno frequenta classes cada vez mais avançadas. Reconhece-se, neste contexto, que a língua é um pilar principal para obtenção de competências básicas para o reconhecimento do passado e enquadramento de diversos conhecimentos sobre a comunidade, como o é o caso de Chidenguele, de modo que, partindo do tempo e do espaço, se estabeleçam comparações com outras culturas que são difundidas pela globalização. Todavia, a formação de um cidadão com uma visão multicultural torna-se um desafio, mesmo sabendo-se que a apreciação da própria cultura local parte com o uso da língua que, no caso particular, é o chope.
A realidade demonstra que no que concerne às Ciências Sociais, o património cultural chope embora seja conhecido pelos alunos oriundos da região, não é resgatado pela escola para posterior sistematização, facto testemunhado pela falta de informação já escrita resultante desse repertoriamento de conteúdos locais pelos professores. Estes factos demonstram que, com a falta de sistematização destes saberes pela escola, o aluno não é preparado para a organização e progressão científica dos conhecimentos. Consequentemente, não tendo subsídios locais sólidos, dificilmente poderá estabelecer comparações com outras realidades mais longínquas, num contexto em que, segundo MINED/INDE (2003, p. 26 e 27), a real integração acontece na escola onde o professor, a direcção e outros interessados devem realizar diversas actividades extra-curriculares, que complementem o ensino-aprendizagem promovido na sala de aulas aproveitando também todas as possibilidades envolventes na região.
As danças e os jogos tradicionais, o artesanato, os ritos de passagem, o culto dos antepassados, o respeito pelas tradições, a estrutura sócio-familiar e as actividades económicas locais de auto-sustento, são elementos sócio-culturais que, segundo a comunidade, devem ser perpetuados e assim se defende a integração definitiva destes no currículo local daquela comunidade. As inovações trazidas pela miscigenação cultural num processo lento, não são vistas como um processo de extinção da cultura chope.
Numa outra vertente, a auscultação anual à sociedade para a identificação de saberes locais pertinentes para a respectiva integração no currículo local, precedida de um longo processo burocrático desde a escola ao distrito e vice-versa, caracterizado pela morosidade na tramitação do expediente, atrasa a planificação do ensino destes saberes pelas escolas. Portanto, não são integrados em tempo útil e, em parte, o aproveitamento dos 20% do tempo lectivo, destinados a conteúdos locais, se revela deficitário.
A língua chope, que é o principal veículo da cultura local, não é de total ou parcial domínio por parte dos professores, na medida em que no ensino de saberes locais se recomenda o uso de conceitos conhecidos pelos alunos na língua local.
Neste rol de constrangimentos, constata-se também que no II Ciclo, a exiguidade de professores falantes desta língua, aliada ao fraco desempenho no resgate de conteúdos locais por parte destes, penaliza o processo de ensino-aprendizagem de saberes locais. Numa altura em que a língua não é apenas um instrumento de comunicação mas também um instrumento de transmissão de culturas e que a sua preservação é vista como um direito humano, espera-se que o professor funcione como mediador cultural, usando a língua local para animar as aulas e ajudar os alunos a aprender (MINED/INDE, 2003).
A realidade demonstra que na escola onde se realizou o presente estudo, a língua chope como um factor de identidade cultural, é partilhada apenas de forma intensa entre os alunos e não como um instrumento de ensino. De facto, durante a assistência das aulas notou-se que os professores limitam-se às informações constantes no manual do aluno devido à ausência de pesquisa de valores de cultura local. As experiências da vida que as crianças trazem da comunidade para a escola acabam não sendo devidamente sistematizadas para que de forma científica se enquadrem em outros conhecimentos universais. Os saberes locais na Localidade de Chidenguele são entendidos apenas como actividades profissionalizantes que contribuem para o desenvolvimento da comunidade. O fraco desempenho dos professores dificulta, em parte, para que o aluno seja capaz de observar, interpretar, analisar, sintetizar e avaliar os diversos aspectos sócio-culturais.
O ensino de práticas locais se revela importante pela polivalência dos seus métodos, carácter transversal e interdisciplinar. A criança é ensinada o essencial, o indispensável para a vida e a utilidade do que aprende com as realidades da vida. E assim, estas práticas devem ser resgatadas e integradas de forma definitiva e não anualmente, embora a sociedade esteja livre para ajustar oportunamente, todos os conteúdos locais que, pela sua natureza, se harmonizem com a cultura local e tragam uma mais-valia para o ensino na escola formal.
Os cursos de formação de professores em todos os níveis devem incluir as metodologias de investigação científica, sobretudo da pesquisa do campo. A selecção dos professores deve ser vocacional e qualitativa. A capacitação pedagógica e metodológica periódica por técnicos qualificados pode contribuir para elevar o índice de intervenção dos professores. A articulação entre a escola, comunidade, ZIP, direcção distrital e outras instituições interessadas no resgate e ensino de saberes locais deve ser mais dinâmica, pontual e menos burocrática. As metodologias e finalidades do ensino de saberes locais devem ser revisitadas constantemente para garantirem a integração do cidadão na cultura geral da humanidade.
A presença de comunidades não chopes na localidade evidencia a diversidade cultural no meio em que o aluno vive e assim desconstrói-se a ideia de isolamento ou exclusão cultural. Há condições para o aluno distinguir diferenças e semelhanças, comparar realidades culturais, distinguir continuidades, descontinuidades e transformações que se verificam na cultura local. A presença de outras culturas na comunidade local deve, ainda, ser aproveitada para a transmissão da cultura de tolerância e convivência em relação às outras culturas do vasto Moçambique e do mundo em geral. Este posicionamento é enaltecido por FORQUIN (1993), ao afirmar que o pluralismo cultural não existe somente entre nações, ele está no interior das nações, no interior das comunidades que as compõem e os próprios indivíduos não escapam à lei geral da diferenciação interna e mestiçagem. A escola deve criar espaços para que o aluno estabeleça uma correlação entre outras realidades e o seu meio. As crianças devem encontrar recursos e referências simbólicas na comunidade local, capazes de preservar a identidade cultural.
O processo de ensino-aprendizagem de saberes locais na Localidade de Chidenguele levanta algumas inquietações que, embora não comprometem os objectivos do presente estudo, se revelam pertinentes para reflexão.
O entendimento sobre o conceito de saberes locais e as respectivas metodologias de ensino é diversificado e em alguns casos nota-se um relativo desconhecimento pelos professores. Partindo desta realidade, questiona-se o enquadramento entre a formação dos professores e o ensino de saberes locais numa altura em que se regista um défice no ensino de saberes locais esperados pela comunidade. Depois das auscultações com os diferentes intervenientes do processo de ensino-aprendizagem de saberes locais notou-se que a visão que o aluno tem limita se ao meio no qual vive. O grande desafio é como integrar o aluno no mundo a partir dos saberes locais.
É, neste âmbito, que reforça-se a necessidade do ensino de todas as disciplinas através da língua chope nas classes do I Ciclo, aspecto que, certamente, revelar-se-á benéfico para os alunos, visto que a língua facilita a compreensão dos conceitos básicos da cultura local, sobretudo quando ensinados pelos professores falantes da mesma língua.
BARROS, José D’Assunção. O campo da História: Especialidades e abordagens. 5ª Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 222p.
FORQUIN, Jean-Claude. A escola e cultura: as bases e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre, 1993.
LOPES, Alice R. C. Pluralismo cultural em políticas de currículo nacional. In: MOREIRA, A. F. Barbosa (org.). Currículo, políticas e práticas. 7ª Edição. Campinas, SP: Papiro, 1999, 183p.
MOREIRA, A. F. e DA SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Cultura, cultura e sociedade. 7ª Edição. S. Paulo, Cortez, 2002, 154p.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre, 1998, 275p.
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